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4 de nov. de 2014

Cosmovisão Reformada na Família

Por Cláudio Marra
Texto Básico: Dt 6.1-25
 Introdução
A palavra “cosmovisão” refere-se a um conceito antigo, mas seu uso em nosso meio é recente. Quem leu Calvinismo, de Kuyper, publicado por esta editora, lembra-se da abordagem dessa questão pelo autor logo no começo do livro. E olhe que as Palestras Stone, origem do texto do livro – foram proferidas no início do século 20. Mas eu cresci na Igreja Presbiteriana, nunca ouvi a expressão e tampouco fui exposto ao conceito. Afinal, do que se trata? Cosmovisão tem a ver com concepção de vida ou perspectiva da realidade. É “a resposta de uma pessoa às principais questões da vida”.1 Por exemplo:
  • Existe Deus? Quem ou o que ele é?
  • Qual é a realidade última?
  • É possível conhecer o mundo?
  • Existe certo e errado? Como saber?
  • O que é o ser humano? Do que ele se compõe? Ele é essencialmente bom? Ele é livre?
Diferentes cosmovisões
Protágoras de Abdera (Abdera, 480 a.C.–Sicília, 410 a.C.) foi quem cunhou a frase “o homem é a medida de todas as coisas”. Se o homem é a medida de todas as coisas, então coisa alguma pode ser medida para os homens, ou seja, as leis, as regras, a cultura, tudo deve ser definido pelo conjunto de pessoas, e aquilo que vale em determinado lugar não deve valer, necessariamente, em outro. O ser humano é a medida da realidade. O resultado dessa posição foi o relativismo.
Séculos depois de Protágoras, e num momento histórico em que o Cristianismo oficial já estava bastante descaracterizado, a proposta do Catolicismo foi que a Igreja determinaria o que era verdade, ela seria a medida de todas as coisas. Mas, apesar da linguagem religiosa e de se bradar Deus o quer, essa foi, no fim das contas, uma proposta humanista, porque quem afinal decidia era o Papa ou eram os Concílios, muitas vezes a partir de pressões militares, políticas ou populares.
A Renascença (séculos 16 e 17) foi a volta ao Humanismo secularista (o homem volta a ser a medida de todas as coisas), mas a Reforma (século 16) promoveu o retorno às Escrituras e o reconhecimento da Soberania de Deus. Sola Scriptura, bradaram os reformadores, contra o humanismo renascentista e contra a pretensa autoridade de papas e concílios. Mas os tempos haveriam de se tornar ainda mais difíceis. A radicalização do humanismo desembocou no Racionalismo, para o qual a Razão humana determina o que é verdade: é o homem sentado no topo da torre de Babel. Resultaram daí o Modernismo e no Comunismo.
Para Kuyper (em pronunciamento do início do século 20, como anotamos), “O Modernismo está comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do homem natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da natureza” (Calvinismo:19). Imaginou-se, primeiro, um deus fora do universo, incapaz de interferir aqui, mas depois chegou-se à idéia de que não precisamos de Deus de modo algum. Com a Teoria da Evolução, nem um Criador distante é mais necessário. Foi decretada a morte de Deus.
Filho do Racionalismo, o Comunismo ateu propunha que a matéria é “Deus” e a origem de todas as coisas. Para o Comunismo, Pecado é a propriedade privada e Redenção é a Revolução do proletariado, retomando o poder para as massas. No Comunismo, o Estado é a medida de todas as coisas. Mas os dirigentes substituíram os proprietários na dominação violenta. O Comunismo era mesmo utopia e sua derrocada marcou o fim do Racionalismo arrogante. O Modernismo saiu de moda. Esta é a era do Pós-modernismo.
Para o Pós-modernismo não há uma verdade absoluta e cada pessoa constrói sua própria realidade a partir de suas experiências e interpretações. Por isso, o Pós-modernismo rejeita o Racionalismo (que afirmava poder-se chegar à verdade pela Razão) e rejeita o Cristianismo (que reconhece Cristo como a verdade).
O Pós-modernismo é representado pelo Existencialismo, mas aí as definições não procedem de um conjunto de pessoas, como entendia Protágoras. No Existencialismo elas procedem de cada indivíduo:
  • O aborto é certo se a mãe achar que é certo.
  • Relações sexuais antes do casamento serão certas se o casal entender assim.
  • Homossexualidade será certa se a pessoa assim achar (ainda que nossa cultura diga que isso não é questão de escolha pessoal).
  • Eutanásia será certa se a pessoa o desejar.
  • Qualquer religião será certa para quem assim pensar.
A proposta do Cristianismo tal como resgatada pela Reforma a partir da Escritura
Aprendemos da Escritura que Deus é espírito, criou todas as coisas, mas existe além da sua criação. Porém, mesmo assim ele pode ser conhecido porque sustenta a sua criação, se autorevela e comunica ao homem a sua vontade quanto ao que o homem deve crer e fazer. Aprendemos que pecado é qualquer falta de conformidade com a vontade revelada de Deus, que resulta em separação de Deus, condenação, mas que, para salvar o seu povo, o Senhor providenciou a Redenção por meio da morte substitutiva de seu Filho.
Então, ao contrário do que afirma o Pós-modernismo, existe a verdade absoluta e ela independe do ser humano, mas pode ser conhecida por ele com a revelação e iluminação divinas. A verdade abrange todas as áreas da vida porque procede de Deus, que é Soberano sobre todas as coisas. O Cristianismo reconhece que Deus é a origem e o sentido de toda a realidade, a medida de todas as coisas. Ele é a realidade última.
Mas, como Deus se vê e como vê ele a realidade? Aprendemos na Escritura que:
  • Deus é único e Salvador (Is 45.22).
  • Deus é criador, sustentador e incompreensível (Is 40.28).
  • Deus se revela (Sl 19.7).
  • Deus é misericordioso (Mq 7.20).
Mas a misericórdia de Deus é exercida principalmente no contexto da Aliança (Êx 2.24). O SENHOR é o Deus da Aliança. E isso nos traz para o âmbito da família, porque Deus criou a família, que deveria cumprir os mandatos da Criação. Não há, pois, melhor (nem anterior) lugar onde esses conceitos devam ser aprendidos.
 O ensino na família dos mandatos ou relacionamentos da criação
A família é a agência designada por Deus como ponto de partida e base para a educação (Dt 6). Na família cada pessoa precisa começar a aprender sobre a cosmovisão bíblica, isto é, na família cada pessoa precisa adquirir primeiro uma perspectiva da realidade tal como Deus a vê. Os pais farão isso ensinando aos filhos os mandatos da criação, antes de qualquer discurso ou sermão, servindo eles mesmos de modelo para os seus filhos.
A. O mandato espiritual – Refere-se ao andar com Deus de nossos primeiros pais (e agora o nosso), tal como Deus andava com eles (Gn 17.1). Fala de um relacionamento de temor e obediência e isso se aprende em casa:
1. Os pais serão modelo de relacionamento com Deus e assim ensinarão que Deus existe. Deus é soberano; Deus deseja andar conosco e nos procura. Nós desejamos andar com ele e o buscamos, o louvamos e adoramos. Nós obedecemos à sua vontade, que encontramos em sua Palavra, estudada e refletida no lar.
2. Os pais serão modelo de restauração após a queda. A desobediência separa, afasta, rompe o relacionamento. Na Queda, Adão e Eva se esconderam de Deus. O Senhor os procurou, anunciou a execução da punição prometida, mas anunciou também o caminho da redenção. As vestimentas providenciadas por Deus para o casal e a anunciada semente da mulher previam a restauração. Os filhos verão tudo isso em seus pais.
Os pais serão modelo para seus filhos deixando-os ver quando buscam o Senhor após pecar, confessando seu pecado e confiando na redenção por meio de Cristo. Pais “perfeitos” não podem ensinar arrependimento a seus filhos. Os pais serão modelo para seus filhos pedindo-lhes perdão quando pecam contra eles.
Os pais conduzirão os seus filhos ensinando-os a confessar eles mesmos os seus pecados, aos pais e irmãos, e a Deus, confiando no sacrifício de Cristo para terem os seus pecados perdoados.
3. Os pais serão modelo de retorno à Aliança. O Deus da Aliança retoma o relacionamento com os rebeldes arrependidos e contritos (Mq 7.19). Pais que retomam o louvor, a adoração, a oração, o estudo da Palavra e a obediência, dão para os seus filhos testemunho do perdão, da misericórdia e da fidelidade de Deus à Aliança. Ensinam que o relacionamento espiritual foi restabelecido.
4. Os pais respeitam o desenvolvimento dos filhos. Tudo isso leva tempo e exige dedicação, sensibilidade e paciência. “Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais” 1Co 3.2), foi a reação de Paulo em relação aos crentes fracos de Corinto. Eles já deviam ter amadurecido, mas o apóstolo respeitou a limitação deles. Com essa preocupação, decidiremos o quê, quando e como ensinar. Os pais não haverão de desistir jamais, porque Deus não desiste (Fp 1.6).
B. O mandato social  Refere-se à vida em família, ao deixar o homem pai e mãe e unir-se à sua mulher, para serem os dois uma só carne e se multiplicarem.
A família foi designada por Deus como base na Criação, base para toda a sociedade (Gn 1.27; 5.1-3). Para cumprir o propósito divino, Adão precisava de ajuda. Para vivermos como Deus quer e para exercer o nosso papel na criação de Deus precisamos de nossas famílias. Na família temos:
> O pai, modelo de autoridade, mas também de sujeição e de entrega (Ef 5.22-29). O pai é a cabeça da casa, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo. Mas Cristo deu a sua vida pela Igreja. O mesmo ato deve fazer o marido e pai. Seu amor deve ser declarado, mas principalmente praticado, para ser visto pelos filhos.
> A mãe, modelo de sujeição (a Igreja a Cristo, Ef 5.22-24), mas também de cuidado e proteção. Os filhos aprenderão que a Igreja deve sujeitar-se a Cristo, mas também aprenderão com ela que Deus cuida de nós e nos consola (Mt 23.37; Is 66.13).
>O casal, modelo de união – Os dois serão uma só carne (Gn 2.24). Formarão um laço ou vínculo (Ez 20.37, trad. brasileira). Isso apontará, na Deidade, para a união da Trindade. E na humanidade, e primeiro no lar, ensinará respeito (reconhecer o outro) e cortesia (fazer concessões ao outro).
> O casal, modelo de distinção e complementaridade. “Criou Deus … homem e mulher” (macho e fêmea, Corrigida) (Gn 1.27). O próprio casal deixará bem clara a idéia de macho e fêmea, oposta à androginia da moda. O papai é o macho e a mamãe é a fêmea. A educação sexual (anatomia, funcionamento, relacionamento – verdade e dignidade) começarão em casa, e não nas pagãs aulas de (des)educação sexual nas escolas.
> O casal, modelo de fidelidade à Aliança que simboliza a Aliança. “… o SENHOR foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade … o SENHOR, Deus de Israel, diz que odeia o repúdio…” (Ml 2.14-16). Os pais levarão a sério a sua aliança, para ensinar os filhos a honrar a aliança de Deus. Divórcio nem passa pela cabeça de um casal crente.
C. O mandato cultural – O Senhor determinou que o ser humano deveria, sob Deus, dominar a terra e desenvolver o seu potencial (Gn 1.26). Assim como o Senhor dominava o universo, o homem refletiria esse senhorio do Criador exercendo domínio sobre todas as criaturas da terra. Como um tipo de mediador entre o Criador e o cosmos, o homem estava entre o mundo animal e o mundo espiritual; entre o pó da terra e o fôlego de vida, com o propósito exclusivo de glorificar de modo inteligente o Senhor Deus.
Outro aspecto desse domínio, base do mandato cultural, é que era um domínio responsável. O homem havia de trabalhar no jardim (Gn 2.15). Aqui o homem reflete a providência de Deus. Cuidando e preservando as plantas que foram criadas por Deus, o homem responde como administrador, um vice-gerente do jardim de Deus.
O mandato cultural nunca foi cancelado. O descrente o ignora quando se põe como senhor da criação. O crente o ignora quando espiritualiza suas responsabilidades. E a família é o primeiro lugar para o desenvolvimento dos aspectos culturais, nas áreas da Política, trabalho, negócios, dinheiro, administração, entretenimento e educação. Tudo isso será trabalhado e desenvolvido pela igreja e pela escola, mas a base deve ser lançada no lar, sob o senhorio e soberania de Deus. Alguns cuidados serão necessários:
1. Enfatizar apropriada e coerentemente o senhorio de Deus;
2. Não isolar os filhos da cultura, mas ensiná-los a desenvolver senso crítico. A doutrina da Depravação Total nos ensina que todas as áreas da vida humana foram afetadas pela Queda. Mas a doutrina da Graça Comum nos garante que o mundo não é tão mal quanto poderia, e manifestações da Graça podem ser encontradas à nossa volta, ainda que em um meio não regenerado. Por isso, vamos, estimular nossos filhos à participação em atividades culturais variadas, evitando o desequilíbrio (concentração exagerada ou exclusiva em esportes, ou artes, ou estudos, ou relacionamentos, ou trabalho).
Conclusão
Tudo começou com a família. A Aliança começou e continuou na família. Cada família deve espelhar o relacionamento entre Jesus e a Igreja, portanto, a Nova Aliança. Precisamos verificar que estamos ali vivendo e ensinando os mandatos da criação, os relacionamentos da Aliança. Isso integrará a vida toda sob Deus, numa perspectiva da realidade que o Senhor mesmo nos ensina em sua Palavra. Isso é uma cosmovisão bíblica ou, como dizemos, reformada.
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Autor da Lição: Cláudio Marra
Estudo publicado originalmente pela Editora Cultura Cristã, na revista Servos Ordenados, n. 9.

Fonte: Ultimato